22 dezembro 2009

[Nao tenho culpa, a falta de acentuacao deve-se ao facto de o teclado ser bulgaro]

Decidi dar um pulo em Sofia, Bulgaria. Vou passar aqui o natal. Um natal pouco natalicio, um natal que nem deve ser natal - um dia normal como os outros. Esta frio e neve, o taxista que me trouxe ao Hostel Mostel pediu-me quatro vezes mais do que o normal, conseguiu ser mais ousado que qualquer taxista de Istambul. Espantoso. Durante a viagem de nove horas dei valor a liberdade que nos, portugueses, temos no nosso pais. Nao costumo dar - costumo antes criticar - mas foi preciso assistir a algumas situacoes invulgares para gostar um pouco mais do meu pais minusculo.

Ainda em Istanbul, o autocarro arrancou e assim que saiu do campo de visao da central rodoviaria encostou debaixo de um viaduto, desligou os motores e um dos passageiros alertou-me para algo em bulgaro. Nao percebi. Todos os passageiros levantaram-se, sairam do autocarro e caminharam em frente, ficando cada vez mais distantes. Ate que deixei de os ver. O condutor apercebeu-se que eu nao estava a apanhar nada e disse-me com um sorriso cumplice: "its ok my friend, stay, stay, its ok". "But whats happening here?", questionei-lhe com todo o direito. A resposta foi parecida a outra: "its ok my friend, stay, stay, its ok". Passado cinco minutos poe o motor a trabalhar, arranca apenas comigo la dentro e recolhe mais a frente os mesmos passageiros que ha cinco minutos tinham abandonado o autocarro. "Finish my friend, we go right now", gritou o condutor. Nao me explicou o que se passou mas foi facil de perceber: passageiros ilicitos que nao podiam passar pelo guarda, vai-se la saber porque. Ok, vamos la entao.

Passaram-se dez minutos e o autocarro para novamente... Mas nao debaixo de um viaduto, desta vez imobilizou-se na autoestrada e comecou a fazer marcha-atras. Isso mesmo, marcha-atras numa auto-estrada... Fe-la de forma a subir uma estrada perpendicular a via rapida, uma estrada alcatroada mas escura e fora de servico. Nao fui o unico a nao perceber o que se passava, ninguem compreendeu e todos espreitavam pelas janelas em busca de uma resposta. Nada. Nada ate surgirem por tras do autocarro umas sirenes da policia seguidas de uns gritos do condutor. Foi entao que aceitei que a viagem tinha terminado naquele momento e que todos acabariamos na esquadra sob um qualquer inquerito. Estava enganado. A policia apareceu vai-se la saber de onde e trazia uma senhora e uma crianca para o autocarro. Depois de fazer o servico arrancou a mil, sempre com as sirenes ligadas. Mais uma vez o motor foi posto a trabalhar e prosseguimos viagem. Nao soube quem era a mulher e a crianca, nem porque tinham entrado no autocarro em plena auto-estrada...

Podia contar mais coisas, desde a um pequeno trafico de tabaco feito na fronteira Turquia-Bulgaria a um passageiro que, depois de ingerir uma garrafa inteira de vodka, tornou-se chato, extremamente audivel, desiquilibradissimo, quis urinar dentro do autocarro com o mesmo em andamento e extendeu-se ao comprido em dois assentos, com as peugas a tocarem-me... E por estas e por outras que deixei de beber :)



29 novembro 2009

Em nome do... véu!

Quando a utilização do véu islâmico dá direito a manifestações!
Por um lado o governo pretende autorizar as mulheres a utilizar o véu em locais públicos, por outro lado a maior parte dos turcos são contra a alteração da lei pois temem que a mudança estimule a criação de um poder mais radical do Islamismo da Turquia e receiam igualmente que, caso o governo consiga alterar uma pequena lei como esta, ganhe poder para alterar outras mais no decorrer dos anos. E se Ataturk melhorou significativamente as condições de vida na Turquia ao importar leis ocidentais para o país, são essas mesmas leis que os turcos desejam manter em vigor. Ainda assim, dezenas de mulheres saíram à rua para manifestar o direito de escolha da utilização do véu.
Não haja dúvidas de que a religião move multidões!
Universidade de Istambul, 26 de Novembro.

Na direcção do vento

Sozinha me sento neste passeio, submissa a ordens do meu pai, o senhor que está ali dentro do carro e que aguarda impacientemente por mais uns trocos que diz serem a nossa única salvação. Aborrece-me estar tantas horas neste sítio, sempre com a mesma roupa, encolhida na mesma posição e encostada a esta parede imunda, tudo para mostrar aos mais velhos que passam o quanto sou infeliz e convencê-los a darem-me uma ou outra lira. O meu pai diz-me que se não o fizer não podemos comer pão. Às vezes olho para as crianças que costumam estar a brincar junto ao mar, devem ter a minha idade. Gostava de poder brincar com elas, parecem estar sempre tão felizes…

Fodasse!, anda lá com essa merda!, sim utilizamos muitas vezes as buzinas, é muito trânsito, muitas pessoas, ‘tás a ver?; então e de onde és? Ah, portekizce! I know Figo, Cristiano Ronaldo, Mourinho! Há gente por todo o lado nesta cidade, dois "portugales" dentro de Istambul, sabias? A shit of traffic, anda lá, vá!; fumas?, este país não anda bem, há muita miséria, muita pobreza...; sim, os gatos estão por todo o lado, és daqueles que gosta de kebabs? Se calhar já comeste carne de gato ou de cão e não sabes, eh, eh, não confies em todos os vendedores de kebabs de Istbambul! Chegámos, besh lira my friend. Have a nice day, portekizce!

Aprendeu a ser reservada tal como a mãe e as suas amigas; a vida ensinou-lhe a olhar o homem como um ser superior e que deve ser bem tratado. A geração que aí vem, turba onde as mulheres se revelam mais livres e espontâneas, garante-lhe um certo alívio mas também a repudia: o desprezo pela religião tende a tornar-se comum entre elas e muitas das que utilizam véu fazem-no por estar na moda, pois numa noite de sexta ou sábado, por mais frio que esteja, andam quase nuas na rua. Contudo, ainda se cruza frequentemente com manifestações de mulheres a lutarem pela autorização do uso de headscarfs em sítios fechados, algo que Ataturk quis que desaparecesse da rotina dos turcos.
[Abre o livro e continua a leitura na página 82, sentada no tram com destino a Kabatas. O transporte vai cheio de gente e alguns dos passageiros utilizam uma máscara a cobrir a boca e o nariz, por causa da gripe.]

Tira-me uma foto ao pé destes pescadores!, deixa-me ver como ficou!, agora tira-me outra aqui, oh!, wonderfull!, esta vou pôr no Facebook!; o guia diz que Sultanahmet tem dois dos mais importantes monumentos da cidade, é lá que está a Mesquita Azul, diz aqui que foi construída pelo sultão Ahmet I e que o esplendor do projecto provocou grandes hostilidades na época, porque uma mesquita seis minaretes era considerada uma tentativa sacrílega de rivalizar com a arquitectura de Meca!, uau!, vamos vê-la? Olha o barco, olha as gaivotas, olha como aquele menino toca bem flauta, take me a picture behind him!, another one! Sim, parece-me ser um óptimo restaurante, tem música ao vivo e tudo!, almoçamos aqui?
...

És estranha, diferente daquilo que nos habituamos a ver. Ora te mostras indisponível ora imploras por companhia naqueles momentos que parecem ser eternos e que não tens coragem de enfrentar sozinha. Não és de confiança, sabes? Num momento mostras miséria noutro sumptuosidade, num instante mostras alvoroço noutro nem um miar de um gato aprovas, na mesma velocidade com que te aparentas atraente manifestas-te fútil e desinteressante, velha e esquecida, tudo isto de forma imponente…

Afinal quem és tu? Uma indecisão entre o ocidente e o oriente? Ou um continente desconhecido entre a Europa e a Ásia? Certo é que as pessoas se sentem bem na tua presença, estejas tu de bom ou mau humor. Elas gostam de ti assim como és, não precisam de fazer muitas perguntas e dispensam a maior parte das respostas. Por que será?

26 novembro 2009

Reflexos

Um cidadão de Istambul que viva na sua cidade sente orgulho, diz que não há sítio mais bonito no mundo. Aquele que parte encontra outros ares agradáveis mas sente um vazio colossal e diário, um sentido de perda chamado saudade. Ou fica e vive assombrado pela nostalgia ou regressa e reencontra-se consigo próprio, com a cidade que o viu crescer e que não permite que habite noutro pedaço de terra que não se chame Istambul.

Estão dois estudantes sentados no jardim maravilhoso da Universidade de Istambul sob a chuva miúda de Outono. São dois turcos e um deles ajuda o amigo com lições de inglês, está preocupado com a proximidade da época de exames e não o quer ver reprovar. Então, pede-lhe que abra o livro numa página ao acaso e que leia em voz alta uma das frases à sua escolha. Estou a uns metros deles e oiço a primeira: “Istanbul… is the… most… beautifull… city in… the world”. Depois a segunda: “I… can… travel to… other cities in… the world but… like Istanbul … there is… no other”.

O céu, o mar, as mesquitas, as cores, o cheiro, os roídos, a arquitectura, as gaivotas, os barcos, os pescadores, o peixe, a carne, o movimento, a religião, os contrastes, a variedade, a mistura, o dia, a noite… Istambul é como um puzzle que necessita de mil peças para estar completo. Um habitante que se afaste é uma peça que se solta e uma paisagem que entra em degredo.Istambul não quer isso.

Portanto, quem nasce na cidade tem o privilégio de acordar diariamente com uma beleza secreta diante dos olhos, mas quem nasça naquela ponta europeia não pertence a outro sítio que não seja aquele. Não consegue ser feliz a não ser onde nasceu. Em Istambul.

23 novembro 2009

Eterno Professor

Partiste num abrir e fechar de olhos, firme nas tuas convicções e ideais, seguro da missão que já tinhas cumprido na terra. Não tiveste medo da morte, nunca, a morte é que temeu a tua presença, apercebeu-se tarde de mais da tua ousadia para enfrentar qualquer que fosse a doença que te calhasse. Cancro. "E depois?", deves ter pensado tu, sacando uma das tuas ironias da algibeira: "Sinto-me privilegiado com esta doença, podia ser outra mais chata. As gripes são bem piores, temos que nos andar sempre a assoar e sempre de termómetro no sovaco. Olhe o meu nariz, nunca esteve tão desentupido! Bem, meu caro, vamos lá despachar o tratamento que ainda vou para Abrantes mostrar aos meus alunos o quanto Direito é bom para a tosse."

Muita coisa muda com a tua partida. Deixas-nos a pensar na existência da vida, mostras-nos que o tempo é o mais veloz dos atletas e o mais sábio dos mestres e, acima de tudo, com a tua morte aprendemos a ser mais humildes.

Valerá a pena chatearmo-nos com tão pouco? Há motivos para andarmo-nos a queixar frequentemente porque as coisas não correm como gostaríamos? "Não, nunca, no tempo da PIDE é que era terrível, abrias a boca uma só vez e ficavas calado para sempre" - seria uma das tuas respostas, estou certo?

És e serás sempre um exemplo para todos nós, temos orgulho em lembrarmo-nos de cada aula que nos deste, de cada raspanete cujo efeito foi devastador. A forma como enfrentaste a doença até ao último segundo diz-nos muito: se a vida não serve para brincarmos, para que serve então?


Descansa em paz Jorge Ferreira.

26 outubro 2009

Do Zero

Não posso aprisionar o tempo nem desejo que ele passe depressa, quero apenas que os minutos sejam suficientes para compreender e mudar aquilo que de errado trago de Lisboa, e manter o que de bom trouxe para o presente que se segue.

"Aprendi que é preciso dar tempo aos outros para olharem", escreveu Miguel Sousa Tavares no seu último livro. Sinto que não tenho feito outra coisa desde que cheguei a Istambul: "deixo" os outros olhar, compreender o que lhes rodeia e observo-os, pois também é importante para mim recolher este tipo de informação. Seja quem for que esteja a actuar - os novos amigos italianos, um simples comerciante ou um dos pescadores da Galata Bridge, por exemplo, pois todos olham para um diferente género de horizonte e todos têm um motivo de conversa que por vezes, de tão simples que é o tema, de longa duração se torna o diálogo... É isso que me fascina em cada um dos actores com quem me tenho cruzado. E, em segundo plano, encontram-se as casas amontoadas que destacam Istambul do resto da Europa, o mar, as pontes, as mesquitas e os seus minaretes apontados para o céu, de onde se escutam as cinco chamadas diárias à oração, melódicas e arrepiantes para qualquer estrangeiro como eu.

Cada hora tem-se revelado um dia, cada dia um mês. Viajar é das melhores coisas que a vida nos pode oferecer e das mais ingratas também, pois no dia em que nos faz sentar é certamente dos momentos mais penosos por que podemos passar. E o que menos desejo é, ao acordar pela manhã, ter de levantar-me da mesma cama todos os dias.